Canabidiol como intervenção neuroterapêutica
Atualmente, a neuropatia periférica induzida por quimioterapia (NPIQ) representa um dos efeitos adversos mais prevalentes e refratários aos tratamentos convencionais em oncologia, afetando significativamente a qualidade de vida dos pacientes e, em casos mais graves, comprometendo a continuidade do tratamento antineoplásico. Nesse contexto, um estudo recente publicado na revista Biomedicines apresenta evidências robustas sobre a eficácia do canabidiol (CBD) e de formulações canabinoides no manejo desse quadro, o que gera resultados que merecem atenção da comunidade médica.
De acordo com a pesquisa, que acompanhou 751 pacientes oncológicos com NPIQ por seis meses, houve melhora significativa em 78% dos participantes. Esses dados, portanto, podem representar um avanço importante no arsenal terapêutico disponível para essa condição de difícil manejo.
Fisiopatologia da neuropatia periférica induzida por quimioterapia
Mecanismos de lesão neural
Em termos fisiopatológicos, a NPIQ ocorre devido à toxicidade direta de agentes quimioterápicos sobre os nervos periféricos, particularmente os axônios sensoriais, o que resulta em degeneração axonal e disfunção mitocondrial. Além disso, diferentes classes de quimioterápicos produzem padrões distintos de neurotoxicidade:
- Taxanos (paclitaxel, docetaxel): Interferem na dinâmica dos microtúbulos, comprometendo o transporte axonal
- Compostos de platina (cisplatina, oxaliplatina): Acumulam-se nos gânglios da raiz dorsal, causando apoptose neuronal
- Alcaloides da vinca (vincristina): Interrompem o transporte axoplasmático
- Inibidores de proteasoma (bortezomib): Afetam o processamento proteico neuronal
A manifestação clínica inclui sintomas sensitivos positivos (parestesias, disestesias, alodinia) e negativos (hipoestesia, perda proprioceptiva), predominantemente em distribuição em “luva e meia”, com progressão centrípeta.
Análise do estudo: metodologia e resultados
Desenho e população do estudo
O estudo adotou um desenho prospectivo observacional, incluindo 751 pacientes oncológicos com diagnóstico confirmado de NPIQ. Os participantes foram estratificados em dois grupos terapêuticos:
- Grupo A: Recebeu formulações com maior concentração de Δ9-tetrahidrocanabinol (THC)
- Grupo B: Recebeu formulações predominantemente ricas em CBD
No estudo, os pacientes foram avaliados quanto à intensidade dos sintomas neuropáticos, à funcionalidade e também à qualidade de vida, utilizando instrumentos validados, como o Inventário de Sintomas Neuropáticos (ISN) e ainda escalas específicas de qualidade de vida para pacientes oncológicos.
Resultados clínicos principais
Após seis meses de tratamento contínuo, os dados demonstraram:
- Redução global dos sintomas neuropáticos em 78% dos pacientes
- Melhora na funcionalidade diária em 38% dos participantes
- Superioridade das formulações com maior proporção de THC em relação à analgesia
- Efeito sinérgico na combinação THC/CBD para controle sintomático abrangente
- Perfil de segurança favorável com baixa incidência de eventos adversos significativos
A análise estratificada por subgrupos revelou que pacientes tratados com taxanos e compostos de platina apresentaram resposta particularmente favorável às intervenções canabinoides.
Mecanismos farmacológicos dos canabinoides na neuropatia
Sistema endocanabinoide e neuroproteção
O efeito terapêutico dos canabinoides na NPIQ é mediado principalmente por sua interação com o sistema endocanabinoide, uma rede neuromodulatória ubíqua que regula diversos processos fisiológicos, incluindo nocicepção e neuroinflamação.
Os principais mecanismos de ação incluem:
- Ativação de receptores CB1: No sistema nervoso central e periférico, os receptores estão presentes predominantemente e, quando o THC os ativa, modulam a transmissão nociceptiva. Isso ocorre porque, ao mesmo tempo em que inibem canais de cálcio voltagem-dependentes, eles também ativam canais de potássio, o que, por sua vez, reduz a liberação de neurotransmissores excitatórios.
- Interação com receptores CB2: Expressos principalmente em células imunes e microglia, sua modulação pelo CBD e THC atenua a neuroinflamação associada à NPIQ.
- Modulação de receptores TRPV1: Nessa linha, o CBD atua como agonista de baixa potência desses receptores, o que leva à dessensibilização e, consequentemente, à redução da hiperalgesia térmica.
- Efeitos antioxidantes diretos: Além disso, o CBD possui propriedades antioxidantes intrínsecas, independentes de receptores, as quais podem contrariar o estresse oxidativo induzido por quimioterápicos nas células neurais.
- Inibição da recaptação de adenosina: Aumentando os níveis extracelulares deste neurotransmissor, o CBD potencializa seus efeitos anti-inflamatórios e neuroprotetores.
Evidências pré-clínicas correlatas
De forma consistente, estudos em modelos animais de NPIQ corroboram os achados clínicos, demonstrando que os canabinoides previnem a degeneração de fibras nervosas periféricas e também reduzem a sensibilização central induzida por quimioterápicos. Mais especificamente, modelos murinos de neuropatia por paclitaxel e oxaliplatina mostram redução significativa da alodinia mecânica bem como da hiperalgesia térmica após a administração de canabinoides.
Implicações clínicas para a prática oncológica

Posicionamento na cascata terapêutica
À luz destes resultados, cabe discutir o posicionamento dos canabinoides na abordagem terapêutica da NPIQ:
Primeira linha: As terapias convencionais para NPIQ (gabapentinoides, antidepressivos tricíclicos, duloxetina) apresentam eficácia limitada e perfil de efeitos adversos considerável.
Segunda linha: Os canabinoides podem ser considerados precocemente no algoritmo terapêutico, particularmente em:
- Pacientes com contraindicações às terapias convencionais
- Casos refratários ao tratamento inicial
- Situações onde a polifarmácia deve ser evitada
Terapia adjuvante: A combinação de canabinoides com terapias convencionais pode permitir redução de doses e potencialização de efeitos, conforme demonstrado em estudos de sinergia farmacológica.
Considerações posológicas e formulações
A titulação adequada das formulações canabinoides é essencial para otimizar o balanço eficácia/tolerabilidade:
- Iniciação: Recomenda-se começar com doses baixas, especialmente de THC (2,5-5mg/dia), com incrementos graduais a cada 2-3 dias.
- Proporção CBD:THC: Pacientes sem experiência prévia com canabinoides podem se beneficiar de razões iniciais mais altas de CBD:THC (20:1 ou 10:1), progredindo para formulações mais equilibradas (1:1) conforme tolerância.
- Administração: De modo geral, as formulações orais (óleos e cápsulas) oferecem uma farmacocinética mais previsível quando comparadas à vaporização, razão pela qual são preferíveis no contexto clínico.
- Monitoramento: Avaliação regular de eficácia e eventos adversos, com atenção particular a efeitos psicoativos, alterações cognitivas e interações medicamentosas.
Outras aplicações dos canabinoides em oncologia
Além do manejo da NPIQ, evidências crescentes suportam o uso de canabinoides em outros contextos da oncologia:
- Náuseas e vômitos induzidos por quimioterapia: Particularmente em casos refratários aos antieméticos convencionais, as evidências de nível 1 indicam que o uso de dronabinol e nabilona é respaldado.
- Caquexia relacionada ao câncer: De acordo com estudos preliminares, há indícios de benefício na estimulação do apetite além da manutenção de massa muscular.
- Dor oncológica: Especialmente nos componentes neuropáticos e inflamatórios, os canabinoides podem atuar como adjuvantes aos opioides, o que permite a potencial redução das doses.
- Distúrbios do sono e ansiedade: Entre as comorbidades mais frequentes em pacientes oncológicos, destacam-se aquelas que podem responder favoravelmente às propriedades ansiolíticas bem como às hipnóticas dos canabinoides.
Aspectos regulatórios e acesso terapêutico
No Brasil, a prescrição de produtos à base de canabinoides segue a Resolução RDC 327/2019 da ANVISA, que estabelece:
- Necessidade de prescrição médica em receituário tipo B (notificação de receita especial)
- Produtos registrados como medicamentos (Mevatyl®) ou autorizados como produtos de Cannabis
- Possibilidade de importação excepcional mediante autorização sanitária individual
Nesse contexto, a documentação adequada do caso clínico — incluindo a comprovação de falha terapêutica às abordagens convencionais — é recomendada, pois respalda a prescrição e ainda facilita a aprovação por operadoras de saúde.
Conclusão e perspectivas futuras
De maneira geral, os resultados apresentados no estudo da Biomedicines representam um avanço significativo na compreensão do potencial terapêutico dos canabinoides no manejo da NPIQ. Além disso, a taxa de resposta de 78% aliada ao impacto positivo na funcionalidade diária posiciona essas intervenções como alternativas promissoras no arsenal terapêutico oncológico.
Entretanto, é fundamental reconhecer as limitações metodológicas do estudo e a necessidade de ensaios clínicos randomizados, duplo-cegos, controlados por placebo, com maior tamanho amostral e seguimento prolongado para consolidar estas evidências.
Nesse cenário, a individualização terapêutica permanece essencial, considerando o perfil de cada paciente, suas comorbidades, medicações concomitantes e também suas preferências pessoais. Portanto, a decisão de incorporar canabinoides ao plano terapêutico deve ser compartilhada, após uma discussão detalhada dos potenciais benefícios, riscos e alternativas disponíveis.
Perguntas frequentes para médicos e profissionais de saúde
1. Quais são as interações medicamentosas mais relevantes dos canabinoides em pacientes oncológicos?
Os canabinoides são metabolizados principalmente pelo sistema CYP450, especialmente CYP3A4 e CYP2C9. Interações clinicamente significativas podem ocorrer com:
- Inibidores de CYP3A4 (claritromicina, cetoconazol): Aumentam níveis séricos de THC e CBD
- Indutores de CYP3A4 (rifampicina, carbamazepina): Reduzem eficácia dos canabinoides
- Anticoagulantes (varfarina): CBD pode inibir CYP2C9, aumentando risco hemorrágico
- Opioides: Potencialização de efeitos sedativos e depressores respiratórios
Recomenda-se monitoramento cuidadoso e potencial ajuste posológico quando utilizados concomitantemente.
2. Como diferenciar clinicamente a NPIQ de outras causas de neuropatia em pacientes oncológicos?
A NPIQ tipicamente apresenta características distintivas:
- Relação temporal com início da quimioterapia (geralmente após dose cumulativa)
- Distribuição simétrica, distal, em “luva e meia”
- Predominância de sintomas sensoriais sobre motores
- Padrão específico conforme o agente (ex: sensibilidade ao frio com oxaliplatina)
- Ausência de outras causas identificáveis (diabetes, deficiência vitamínica, compressão)
Ferramentas como o Total Neuropathy Score (TNS) podem auxiliar na avaliação objetiva e monitoramento.
3. Quais biomarcadores podem predizer resposta aos canabinoides na NPIQ?
Embora ainda em investigação, potenciais preditores de resposta incluem:
- Polimorfismos genéticos do sistema endocanabinoide (FAAH, CNR1, CNR2)
- Níveis séricos de endocanabinoides (anandamida, 2-AG)
- Perfil inflamatório (razão neutrófilos/linfócitos, níveis de citocinas)
- Características clínicas da neuropatia (predomínio de dor neuropática vs. déficits sensoriais)
Estudos de farmacogenômica estão em andamento para identificar subpopulações com maior probabilidade de resposta.
4. Como monitorar objetivamente a eficácia do tratamento com canabinoides na NPIQ?
Recomenda-se abordagem multimodal:
- Escalas validadas de intensidade de sintomas (NRS, VAS)
- Questionários específicos de neuropatia (NPSI, DN4)
- Avaliação funcional (capacidade de realizar atividades diárias)
- Exame neurológico seriado (teste de monofilamento, discriminação térmica)
- Avaliação da qualidade do sono e humor
- Potencialmente, estudos eletrofisiológicos (condução nervosa) em casos selecionados
Documentação sistemática destes parâmetros a cada 4-6 semanas permite ajustes terapêuticos baseados em dados objetivos.
5. Existe potencial para neuroproteção preventiva com canabinoides antes do início da quimioterapia?
De forma consistente, estudos pré-clínicos sugerem efeito neuroprotetor quando canabinoides são administrados previamente à exposição a agentes neurotóxicos. Além disso, dados preliminares em modelos animais demonstram redução na incidência e na gravidade da NPIQ com o pré-tratamento com CBD.
Entretanto, ainda não existem ensaios clínicos de fase III que validem esta abordagem preventiva em humanos. Estudos piloto estão em andamento para avaliar segurança e eficácia da administração profilática de canabinoides em pacientes de alto risco para desenvolvimento de NPIQ.
Nota: Este artigo tem finalidade informativa e educativa. As informações não substituem a orientação médica profissional. Consulte sempre um médico antes de iniciar qualquer tratamento.