O Potencial Inexplorado do cânhamo e cannabis no Brasil
Um abrangente relatório científico, elaborado pela Embrapa em colaboração com o Instituto Ficus, apresenta evidências robustas sobre o potencial brasileiro na produção de cânhamo e cannabis industrial. Atualmente, o Brasil possui todas as condições edafoclimáticas, tecnológicas e de infraestrutura para se tornar um dos principais players globais nesse setor emergente. Além disso, o documento “Caminhos Regulatórios para o Cânhamo no Brasil”, divulgado em Brasília, delineia um plano estratégico baseado em evidências para o desenvolvimento sistemático dessa cadeia produtiva. O relatório também aponta implicações significativas para a prática clínica, a pesquisa biomédica e, consequentemente, para a saúde pública.
Esta análise multidisciplinar resulta de um grupo de trabalho vinculado ao Conselho de Desenvolvimento Econômico Sustentável da Presidência da República (CDESS). O estudo estabelece parâmetros técnicos para alinhar evidências científicas, demandas do setor produtivo e políticas públicas. Tudo isso reunido em um framework coerente e fundamentado em dados..
Fundamentação Científica e Barreiras Regulatórias
Evidências Científicas e Necessidade de Pesquisa Translacional
O diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa, Dr. Clenio Pillon, enfatizou durante o seminário de lançamento ainda a incongruência entre o potencial científico brasileiro e as atuais limitações regulatórias. Segundo ele, “a Embrapa não deve se furtar de trabalhar para o desenvolvimento da cadeia produtiva da cannabis. Afinal, não é concebível que, num país com nossa biodiversidade e capacidade técnica, estejamos importando matérias-primas essenciais para a indústria farmacêutica e para aplicações terapêuticas.”
A declaração reflete, portanto, uma preocupação crescente na comunidade científica quanto à dependência de insumos importados para pesquisa e desenvolvimento de terapias baseadas em canabinoides. Isso porque, frequentemente, esses insumos chegam a custos proibitivos e, além disso, apresentam variabilidade de qualidade que acaba comprometendo a reprodutibilidade dos estudos clínicos.
Limitações Metodológicas Impostas pela Legislação Atual
Um aspecto crítico identificado no relatório é como a atual estrutura regulatória impede o avanço de pesquisas sistemáticas em várias áreas:
- Desenvolvimento de cultivares adaptados: A pesquisadora Dra. Daniela Bittencourt, da Embrapa, destacou que a falta de autorização para pesquisas com germoplasma de cannabis atualmente limita severamente o desenvolvimento de variedades geneticamente adaptadas ao clima tropical brasileiro. Como consequência, cria-se uma barreira significativa à translação do conhecimento básico para, enfim, alcançar aplicações clínicas.
- Estudos de biodisponibilidade: As restrições atuais dificultam pesquisas sobre farmacocinética e farmacodinâmica de canabinoides em condições tropicais, fundamentais para estabelecer protocolos terapêuticos precisos.
- Ensaios clínicos multicêntricos: A ausência de material padronizado de produção nacional cria obstáculos metodológicos para estudos clínicos de larga escala.
O Dr. Ricardo Alamino Figueiredo, chefe-geral da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, contextualizou que as discussões técnicas sobre o tema iniciaram-se há cerca de três anos. Além disso, destacou que “esse projeto visa acelerar o desenvolvimento da pesquisa e do mercado do cânhamo no Brasil”. Nesse sentido, acrescentou que “o relatório apresentado constitui uma contribuição inicial, baseada em evidências, para impulsionar esse processo científico”.
Impacto Econômico e Implicações para a Saúde Pública
Análise Econométrica e Projeções Baseadas em Evidências
O economista Dr. Rafael Giovanelli, do Instituto Escolhas, apresentou uma análise econométrica indicando que o cultivo de cânhamo pode superar culturas tradicionais em rentabilidade por hectare, incluindo commodities como soja e algodão. O estudo projeta, utilizando modelos estatísticos robustos, a criação de aproximadamente 14.000 empregos qualificados e receitas estimadas em R$ 5,76 bilhões até 2030, condicionado à implementação de um framework regulatório adequado.
“Os dados epidemiológicos e econômicos convergem para uma conclusão inequívoca: atualmente, quase 100% dos derivados de cânhamo utilizados em terapias no Brasil são importados. A produção nacional pode não apenas substituir essas importações, mas também otimizar a relação custo-efetividade de produtos e intervenções terapêuticas, além de gerar excedentes exportáveis com valor agregado significativo”, explicou Dr. Giovanelli.
Perspectiva Global e Análise Comparativa

O mercado global de derivados da cannabis e cânhamo movimentou entre US$ 5-7 bilhões em 2023, com projeções de crescimento anual de até 25% na próxima década, segundo dados apresentados no relatório. Esta tendência é corroborada por meta-análises recentes que demonstram a expansão consistente das aplicações terapêuticas dos canabinoides em diversas condições clínicas.
Inovação Biomédica e Potencial Terapêutico
Programa de Pesquisa em Cannabis da Embrapa
A Dra. Daniela Bittencourt apresentou a estrutura do proposto Programa de Pesquisa em Cannabis da Embrapa, que abrange um continuum científico desde o desenvolvimento de novas cultivares com perfis fitoquímicos específicos até estratégias de zoneamento climático e políticas públicas baseadas em evidências.
“A ausência de pesquisa sistemática cria um ciclo vicioso: sem evidências científicas robustas, perpetuam-se lacunas no conhecimento que impedem a elaboração de políticas públicas baseadas em dados. Sem ciência, sem pesquisa translacional, aquilo que é potencial não se converterá em benefícios terapêuticos tangíveis”, afirmou a pesquisadora, destacando a necessidade de investimentos coordenados em ciência básica e aplicada.
Aplicações Industriais e Biomédicas
O relatório documenta mais de 25.000 aplicações catalogadas da planta globalmente, incluindo:
- Biomateriais avançados: Desenvolvimento de scaffolds para medicina regenerativa
- Nutracêuticos e alimentos funcionais: Formulações com perfis específicos de ácidos graxos e proteínas
- Insumos farmacêuticos: Produção padronizada de canabinoides e terpenos para aplicações terapêuticas
- Biomateriais para dispositivos médicos: Compósitos de alta resistência e biocompatibilidade
“Do ponto de vista da sustentabilidade biomédica, estamos diante de uma cadeia produtiva de desperdício zero, onde cada componente da planta pode ser direcionado para aplicações específicas em saúde”, resumiu Dr. Rafael Arcuri, da Associação Nacional do Cânhamo.
Parâmetros Técnicos e Considerações Regulatórias
Análise Crítica dos Limites Atuais de THC
O professor Dr. Sergio Barbosa, da Universidade Federal de Viçosa, apresentou dados que questionam a adequação do limite atual de 0,3% de THC. Esse limite foi estabelecido para o cânhamo industrial. Sua análise, baseada em estudos de expressão gênica e influência ambiental na biossíntese de canabinoides, sugere que esse parâmetro inviabiliza a produção em condições brasileiras. A recomendação técnica proposta é a ampliação do limite para até 2%. Essa mudança se alinha às evidências científicas e práticas regulatórias já adotadas em outros países com programas bem-sucedidos.
Modelos Regulatórios Internacionais: Lições para o Brasil
O relatório analisa comparativamente frameworks regulatórios internacionais, destacando países como Uruguai e Paraguai como exemplos de regulamentação tecnicamente fundamentada, com ênfase em:
- Segurança jurídica para pesquisa clínica: Estabelecimento de protocolos claros para estudos clínicos e pré-clínicos
- Parâmetros técnicos objetivos: Definição de standards analíticos para controle de qualidade
- Atração de investimentos em P&D: Incentivos fiscais para pesquisa translacional
Dr. Sergio Vazquez Barrios, do Ministério da Agricultura uruguaio, apresentou dados epidemiológicos e econômicos demonstrando que a estabilidade legal desde 2013 foi determinante para que o Uruguai se transformasse em exportador de derivados de cannabis e cânhamo com aplicações médicas, gerando conhecimento científico e propriedade intelectual.
Implicações para a Prática Clínica e Saúde Pública
Acesso a Terapias e Equidade em Saúde
O advogado especializado em direito médico Dr. Emílio Figueiredo defendeu que qualquer framework regulatório deve priorizar mecanismos de inclusão social e acesso equitativo a terapias baseadas em canabinoides. Segundo sua análise jurídica, a ausência de regras claras não apenas gera insegurança jurídica para pesquisadores e médicos prescritores, mas também perpetua iniquidades no acesso a tratamentos.
Dra. Tatiana Ribeiro, do Grupo Centroflora, apresentou modelos de capacitação técnica para profissionais de saúde que poderiam ser adaptados e implementados para o setor do cânhamo medicinal, enfatizando a importância da educação médica continuada neste campo emergente.
Conclusão e Perspectivas Futuras
O lançamento deste relatório técnico representa um marco significativo no debate científico sobre o potencial do cânhamo e da cannabis no Brasil. A convergência de evidências indica que, com um framework regulatório sólido, o país pode transformar esta planta em nova fronteira agrícola, científica e industrial. Esse avanço teria implicações substanciais para a medicina e a saúde pública. Para os profissionais de saúde, o relatório oferece perspectivas baseadas em evidências sobre o desenvolvimento de novos insumos terapêuticos nacionais. Esses insumos trariam maior controle de qualidade, rastreabilidade e custo-efetividade, expandindo o arsenal terapêutico disponível para diversas condições clínicas.
Ação recomendada: profissionais de saúde interessados devem acessar o relatório completo no portal da Embrapa.
Além disso, podem participar dos grupos de trabalho técnico-científicos que darão continuidade às diretrizes apresentadas.
Perguntas frequentes para Médicos e Profissionais de Saúde
Quais são as principais barreiras científicas para o desenvolvimento de medicamentos à base de cannabis no Brasil atualmente?
As principais barreiras incluem a dificuldade de acesso a material genético para pesquisa. Somam-se ainda limitações para cultivo experimental, mesmo em ambientes controlados. Também há ausência de parâmetros técnicos padronizados para ensaios clínicos. E, por fim, falta uma cadeia produtiva nacional que garanta insumos de qualidade farmacêutica consistente para estudos de larga escala.
Como a regulamentação do cânhamo industrial poderia impactar a pesquisa clínica com canabinoides?
A regulamentação do cânhamo industrial criaria um framework legal que permitiria o desenvolvimento de cultivares padronizados com perfis fitoquímicos específicos, facilitando estudos de biodisponibilidade, ensaios clínicos controlados e o desenvolvimento de protocolos terapêuticos baseados em evidências. Adicionalmente, permitiria a produção nacional de insumos farmacêuticos ativos (IFAs) derivados de cannabis, reduzindo custos e aumentando a reprodutibilidade dos estudos.
Quais evidências científicas sustentam a proposta de elevação do limite de THC para 2% no cânhamo industrial?
Estudos de expressão gênica e influência ambiental na biossíntese de canabinoides demonstram que plantas de cânhamo cultivadas em condições tropicais podem naturalmente expressar níveis mais elevados de THC. Isso ocorre mesmo sem alterações genéticas. Dados de países com programas estabelecidos indicam que o limite de 2% é tecnicamente mais adequado para condições edafoclimáticas similares às brasileiras. Esse limite não compromete a segurança nem aumenta o potencial de uso recreativo. Afinal, o percentual permanece significativamente abaixo do encontrado em variedades psicoativas, que geralmente ultrapassam 15%.
Que impacto a produção nacional de cânhamo e cannabis teria na prescrição e acesso a medicamentos à base de canabinoides?
A produção nacional teria o potencial de, por um lado, reduzir custos, aumentar a disponibilidade e a padronização dos produtos. Por outro lado, permitir o desenvolvimento de formulações específicas para a população brasileira, considerando suas particularidades genéticas e epidemiológicas. Além disso, essa produção poderia ainda facilitar a inclusão desses medicamentos em protocolos clínicos do SUS e em planos de saúde. Dessa forma, expandir significativamente o acesso a tratamentos baseados em canabinoides.
Como médicos podem se manter atualizados sobre os desenvolvimentos científicos e regulatórios nesta área?
Recomenda-se, portanto, o acompanhamento de publicações técnicas da Embrapa e de institutos de pesquisa parceiros, bem como a participação em congressos especializados em endocanabinologia e medicina canabinoide. Do mesmo modo, sugere-se o engajamento com sociedades médicas que estão desenvolvendo diretrizes baseadas em evidências para o uso clínico de canabinoides. Além disso, o relatório indica a criação de um observatório científico dedicado ao tema, o qual teria a função de centralizar evidências e atualizações regulatórias relevantes e, assim, apoiar diretamente a prática clínica.
Atenção: Este artigo tem caráter informativo e não substitui a consulta médica. Qualquer tratamento deve ser iniciado apenas sob orientação profissional.