Canabigerol demonstra potencial analgésico em estudo pioneiro da UERJ

Canabigerol demonstra potencial analgésico em estudo pioneiro da UERJ

O canabigerol como nova fronteira no manejo da dor

Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), recentemente, trouxe à luz evidências substanciais sobre o potencial terapêutico do canabigerol (CBG), um canabinoide não psicoativo ainda relativamente inexplorado da Cannabis sativa. Mais especificamente, esta investigação pré-clínica, publicada na revista Scientia Pharmaceutica, representa um avanço significativo na busca por alternativas farmacológicas para o tratamento de dores crônicas, principalmente aquelas de difícil manejo, como as neuropáticas.

Atualmente, em um contexto onde aproximadamente 30% da população mundial sofre com dores persistentes, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), e tendo em vista as limitações e os riscos associados aos analgésicos convencionais — especialmente os opioides —, a identificação de compostos com perfil de segurança favorável e, ao mesmo tempo, eficácia comprovada, torna-se não apenas desejável, mas também imperativa para a prática clínica contemporânea.

Propriedades farmacológicas do canabigerol: base molecular e mecanismos de ação

Caracterização bioquímica do CBG

Nesse sentido, o canabigerol destaca-se na farmacologia dos canabinoides por suas características únicas. Ao contrário do tetrahidrocanabinol (THC), o CBG não apresenta propriedades psicoativas, o que significa que, além de ser bem tolerado, posiciona-se como candidato preferencial para aplicações terapêuticas em que a preservação das funções cognitivas é essencial.

Conforme explica o professor Guilherme Carneiro Montes, coordenador do projeto no Instituto de Biologia da UERJ (Ibrag/UERJ), “o CBG não tem efeito psicoativo e é precursor químico dos outros canabinoides”. Por essa razão, essa característica bioquímica é fundamental para compreender seu potencial terapêutico diferenciado.

Do ponto de vista estrutural, o CBG é considerado a “molécula-mãe” de vários canabinoides, sendo convertido enzimaticamente em THC, CBD e outros compostos durante o desenvolvimento da planta. Dessa forma, essa posição na biossíntese dos canabinoides confere ao CBG propriedades farmacológicas distintas e, além disso, mecanismos de ação potencialmente complementares aos canabinoides mais estudados.

Interação com o sistema endocanabinoide

Evidências preliminares sugerem que o CBG interage com o sistema endocanabinoide através de mecanismos múltiplos, incluindo:

  • Agonismo parcial dos receptores CB1 e CB2
  • Inibição da recaptação da anandamida (endocanabinoide endógeno)
  • Modulação de canais TRP (Transient Receptor Potential)
  • Interação com receptores adrenérgicos α-2

Dessa maneira, essa versatilidade farmacológica pode explicar a amplitude dos efeitos analgésicos observados nos modelos experimentais, visto que abrange tanto mecanismos centrais quanto periféricos de modulação da dor.

Metodologia e desenho experimental: rigor científico na avaliação do CBG

Com esse objetivo, o estudo da UERJ implementou um protocolo experimental robusto, utilizando modelos de dor bem estabelecidos em roedores com sensibilidade aumentada devido à hipóxia-isquemia pré-natal — uma condição que, por sua vez, simula complicações gestacionais e, como resultado, suas implicações neurológicas.

Protocolos de indução e avaliação da dor

Os pesquisadores empregaram três modelos distintos de dor, permitindo uma caracterização abrangente do potencial analgésico do CBG:

  1. Teste de dor térmica: Utilizando placa aquecida a 52°C, avaliou-se o tempo de latência para reação dos animais, indicativo de analgesia central.
  2. Modelo de dor inflamatória: Simulando processos inflamatórios agudos, este teste permitiu avaliar a eficácia do CBG nas fases iniciais e tardias da resposta inflamatória.
  3. Modelo de dor neuropática: Particularmente relevante para a prática clínica, este protocolo avaliou a eficácia do CBG em condições de dor crônica de origem neural.

A administração oral de CBG na dose de 50 mg/kg foi padronizada, permitindo comparações consistentes entre os diferentes modelos e facilitando futuras extrapolações para estudos clínicos.

Avaliação de parâmetros secundários

Além dos endpoints primários relacionados à analgesia, o estudo monitorou cuidadosamente potenciais efeitos adversos, incluindo:

  • Função motora
  • Nível de sedação
  • Alterações comportamentais
  • Marcadores bioquímicos de toxicidade

A ausência de comprometimento motor ou sedação significativa, efeitos comumente observados com analgésicos potentes, representa uma vantagem clínica potencial do CBG.

Resultados principais: evidências de eficácia analgésica do canabigerol

Efeito analgésico em múltiplos modelos de dor

Os resultados do estudo demonstraram eficácia significativa do CBG nos três modelos de dor avaliados:

  • No teste térmico: Os animais tratados com CBG apresentaram aumento no tempo de latência para reação ao estímulo térmico, sugerindo modulação efetiva da dor por mecanismos centrais.
  • No modelo inflamatório: O CBG demonstrou ação tanto na fase aguda quanto na fase inflamatória do teste, indicando potencial para manejo de dores associadas a processos inflamatórios.
  • Na dor neuropática: Após um período de dez dias de tratamento continuado, observou-se uma redução significativa da hipersensibilidade dolorosa, e o mais importante, sem o desenvolvimento de tolerância — um achado particularmente relevante, sobretudo ao se considerar a natureza refratária das dores neuropáticas aos tratamentos convencionais.

Dimorfismo sexual na resposta ao CBG

Um achado de particular relevância clínica foi a identificação de diferenças sexo-específicas na resposta ao CBG. Segundo Bismarck Rezende, doutorando em Fisiopatologia Clínica e Experimental na UERJ e primeiro autor do estudo:

“Vimos que o composto atua por vias diferentes em machos e fêmeas, o que é importante ser considerado em futuras pesquisas e tratamentos.”

Além disso, essa observação alinha-se com a crescente compreensão de que fatores hormonais e genéticos influenciam significativamente a farmacodinâmica e a farmacocinética de diversos agentes terapêuticos, incluindo os canabinoides. Com isso, reforça-se a necessidade de abordagens personalizadas no manejo da dor.

Mecanismos moleculares subjacentes à ação analgésica do CBG

Além disso, as análises moleculares conduzidas como parte do estudo revelaram insights importantes sobre os mecanismos pelos quais o CBG exerce seus efeitos analgésicos:

“Nossas análises moleculares mostraram que, além de aliviar a dor, o CBG parece interferir em mecanismos que contribuem para a sua persistência crônica”, afirma Bismarck Rezende.

Estes achados sugerem que o CBG pode atuar não apenas como agente sintomático, mas potencialmente como modificador da história natural da dor crônica, interferindo em processos de sensibilização central e periférica que sustentam a cronificação da dor.

Adicionalmente, evidências preliminares apontam para a modulação de vias inflamatórias, incluindo, por exemplo, a redução na produção de citocinas pró-inflamatórias e também a interferência em cascatas de sinalização associadas à neuroplasticidade mal-adaptativa, como é o caso da via do NF-κB e da ativação microglial.

Aplicações terapêuticas potenciais do canabigerol além da analgesia

CBG no tratamento de dermatite atópica

Em paralelo ao estudo da UERJ, outra pesquisa, recentemente publicada na revista MDPI, investigou os efeitos do CBG no tratamento da dermatite atópica (DA), uma condição inflamatória crônica da pele. Utilizando modelos celulares e experimentação em camundongos, os pesquisadores observaram que o CBG:

  • Reduziu significativamente marcadores inflamatórios cutâneos
  • Melhorou a integridade da barreira epidérmica
  • Modulou a resposta imunológica local

Estes resultados expandem o potencial terapêutico do CBG para além das aplicações analgésicas, sugerindo possíveis benefícios em condições inflamatórias de diferentes etiologias.

Potencial neuroprotetor e anti-inflamatório

Estudos preliminares têm apontado para propriedades neuroprotetoras do CBG, possivelmente mediadas por:

  • Efeitos antioxidantes
  • Modulação da neuroinflamação
  • Regulação da homeostase mitocondrial
  • Efeitos anti-excitotóxicos

Estas propriedades sugerem aplicações potenciais em condições neurodegenerativas e neurológicas, além de seu papel na modulação da dor.

Considerações clínicas e translacionais: da bancada ao leito

Limitações dos estudos pré-clínicos e necessidade de ensaios clínicos

Apesar disso, os resultados promissores precisam ser interpretados com cautela, pois é fundamental reconhecer as limitações inerentes aos estudos pré-clínicos. Nesse contexto, os pesquisadores enfatizam que a translação desses achados para a prática clínica requer a condução de ensaios clínicos rigorosos em seres humanos, a fim de:

  • Confirmar a eficácia analgésica em diferentes condições dolorosas
  • Estabelecer parâmetros farmacocinéticos e farmacodinâmicos em humanos
  • Determinar dosagens terapêuticas ideais
  • Avaliar perfil de segurança em curto e longo prazo
  • Identificar possíveis interações medicamentosas

Desafios regulatórios e produção farmacêutica

A incorporação do CBG ao arsenal terapêutico enfrenta desafios regulatórios significativos, incluindo:

  • Classificação legal do composto em diferentes jurisdições
  • Padronização de métodos de extração e purificação
  • Controle de qualidade na produção em escala industrial
  • Desenvolvimento de formulações farmacêuticas apropriadas

Estes aspectos precisam ser adequadamente endereçados para viabilizar a translação clínica dos achados experimentais.

Conclusão: implicações para a prática clínica e pesquisa futura

Nesse sentido, o estudo conduzido pela UERJ representa uma contribuição significativa para o campo da farmacologia dos canabinoides e para o desenvolvimento de novas estratégias terapêuticas no manejo da dor. Como resultado, o canabigerol emerge como um candidato promissor para o desenvolvimento de analgésicos com perfil de segurança favorável, potencialmente preenchendo uma lacuna importante no arsenal terapêutico atual.

Para o médico clínico, estes achados sugerem que, em um futuro próximo, o CBG pode constituir uma alternativa ou adjuvante valioso no manejo de pacientes com dor crônica, particularmente aqueles com dor neuropática refratária ou intolerantes aos analgésicos convencionais.

A continuidade da investigação científica, com ênfase em estudos clínicos bem desenhados, será fundamental para consolidar o papel do CBG na prática médica e para elucidar completamente seu potencial terapêutico.

Perguntas frequentes para médicos e profissionais de saúde

1. Quais são as principais diferenças farmacológicas entre o CBG e outros canabinoides como CBD e THC?

O CBG distingue-se por ser um canabinoide não-psicoativo e precursor biossintético de outros canabinoides. Diferentemente do THC, não produz efeitos psicoativos significativos. Em comparação com o CBD, o CBG apresenta afinidade direta pelos receptores CB1 e CB2, enquanto o CBD atua principalmente como modulador alostérico. O CBG também demonstra maior afinidade por receptores adrenérgicos α-2 e potencialmente diferentes interações com canais TRP.

2. Quais pacientes com dor crônica poderiam potencialmente se beneficiar mais do tratamento com CBG, considerando os achados atuais?

Com base nos resultados pré-clínicos, os pacientes com dor neuropática refratária aos tratamentos convencionais representam a população com maior potencial de benefício. Além disso, pacientes com contraindicações ou intolerância a opioides, aqueles com dor associada a processos inflamatórios crônicos e indivíduos que necessitam de analgesia prolongada sem comprometimento cognitivo também constituem grupos potencialmente beneficiados.

3. Como interpretar clinicamente o dimorfismo sexual observado na resposta ao CBG?

Por um lado, o dimorfismo sexual na resposta ao CBG sugere a necessidade de considerar fatores hormonais e genéticos na individualização terapêutica. Do ponto de vista clínico, isso pode implicar em diferentes regimes posológicos ou ainda em expectativas de resposta específicas, baseadas no sexo do paciente.Além disso, essa observação alinha-se com o crescente reconhecimento da medicina personalizada e, portanto, reforça a necessidade de estratificação por sexo em futuros ensaios clínicos.

4. Quais seriam as possíveis interações medicamentosas relevantes a considerar caso o CBG seja incorporado à prática clínica?

Embora dados específicos sobre interações medicamentosas do CBG sejam limitados, por analogia com outros canabinoides, deve-se considerar potenciais interações com:

  • Medicamentos metabolizados pelo citocromo P450, particularmente CYP3A4 e CYP2C19
  • Outros depressores do sistema nervoso central
  • Anticoagulantes e antiplaquetários
  • Imunossupressores
  • Antipsicóticos

Os profissionais de saúde devem monitorar cuidadosamente os pacientes em politerapia.

5. Como o CBG se posicionaria em um algoritmo de tratamento para dor neuropática, considerando as opções terapêuticas atuais?

Com base nos dados atuais, o CBG poderia ser considerado como terapia adjuvante de segunda ou terceira linha após falha ou intolerância a tratamentos estabelecidos como antidepressivos duais, anticonvulsivantes e opioides. Em pacientes com contraindicações específicas a estas classes, o CBG poderia potencialmente ser considerado mais precocemente. A integração definitiva em algoritmos terapêuticos, entretanto, dependerá dos resultados de ensaios clínicos de fase II e III.

Nota: Este artigo tem finalidade informativa e educativa. As informações não substituem a orientação médica profissional. Consulte sempre um médico antes de iniciar qualquer tratamento.

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