O panorama atual da cannabis medicinal importada no Brasil
Com efeito, a recente atualização da lista de produtos de cannabis medicinal autorizados para importação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) representa um marco significativo para a prática clínica no Brasil. A Nota Técnica nº 58, que integra as diretrizes da RDC nº 660/2022, disponibiliza 619 formulações canabinoides para prescrição médica, consolidando a importação como principal via de acesso terapêutico enquanto o país ainda debate a regulamentação do cultivo doméstico para fins medicinais.
Além disso, essa atualização traz implicações diretas para a prática clínica, ao oferecer um repertório farmacológico mais amplo e diversificado — o que é essencial para a personalização terapêutica em diversas condições neurológicas, psiquiátricas e de dor crônica.
Análise do perfil de produtos disponíveis: origem e diversidade
Predominância norte-americana e diversificação global
A análise epidemiológica da lista revela que 65,9% dos produtos autorizados (408 de 619) são fabricados nos Estados Unidos, evidenciando, assim, a liderança tecnológica e regulatória daquele país no desenvolvimento de formulações canabinoides. Essa predominância, por sua vez, pode ser atribuída ao amadurecimento precoce do mercado americano além da robustez de seus sistemas de controle de qualidade.
Entretanto, o perfil de fornecedores demonstra uma tendência à diversificação geográfica significativa:
- América do Norte: Estados Unidos e Canadá
- Europa: Países Baixos, Suíça, Espanha, Portugal, Bulgária e Bélgica
- América Latina: Colômbia e Uruguai
- África: Uganda
- Ásia: Índia
Por conseguinte, essa distribuição global de fornecedores — que abrange mais de 30 países — reflete não apenas a expansão das cadeias produtivas de cannabis medicinal, mas também a possibilidade de, a médio prazo, promover maior competitividade e reduzir os custos para os pacientes brasileiros.
Diversidade farmacológica e implicações clínicas
O repertório farmacológico disponibilizado contempla:
- Formas farmacêuticas: óleos, tinturas, cápsulas e soluções
- Volumes: de 5ml a 120ml
- Concentrações: ampla variação, desde centenas até milhares de miligramas
- Perfis de canabinoides: CBD isolado, formulações full spectrum, e combinações específicas de CBD, THC e CBG
Como resultado, essa heterogeneidade farmacológica possibilita maior precisão na titulação de doses e no ajuste terapêutico — o que, por sua vez, permite abordagens personalizadas para condições como:
- Epilepsias refratárias
- Transtornos do espectro autista
- Dor crônica neuropática
- Espasticidade associada à esclerose múltipla
- Sintomas de doenças neurodegenerativas
- Transtornos de ansiedade
Impacto epidemiológico e acesso terapêutico
De acordo com o Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil 2024 (Kaya Mind), aproximadamente 672.000 brasileiros utilizaram cannabis medicinal no último ano. Dentre esse total, 313.000 recorreram à importação para acessar os produtos. Além disso, uma pesquisa complementar do portal Cannabis & Saúde corrobora essa tendência, ao mostrar que 65,6% dos usuários dependem da via importadora.
Dessa forma, esses números evidenciam a relevância epidemiológica da RDC 660/2022 como instrumento de acesso terapêutico, ao estabelecer um procedimento simplificado que exige:
- Prescrição médica ou odontológica
- Cadastro prévio no sistema da Anvisa
- Avaliação documental pela agência
- Autorização para importação
Garantias de qualidade e segurança farmacológica
Nesse sentido, um aspecto fundamental da regulamentação atual é a exigência de Certificados de Análise (CoA) para produtos importados — documento que atesta:
- Teor preciso de canabinoides
- Ausência de contaminantes microbiológicos
- Níveis de metais pesados dentro dos limites seguros
- Ausência de resíduos de pesticidas
Essa exigência representa, portanto, um avanço significativo na segurança farmacológica — especialmente relevante para um medicamento derivado de planta, com variabilidade intrínseca de composição. Consequentemente, a padronização analítica permite maior previsibilidade de resposta terapêutica e, além disso, minimiza os riscos de eventos adversos relacionados a contaminantes.
Implicações para a prática clínica

Estratificação terapêutica e medicina personalizada
A diversidade de produtos disponíveis permite estratificação terapêutica baseada em:
- Perfil farmacológico do produto:
- CBD isolado: indicado para condições onde o THC não é desejável
- Formulações broad spectrum: maior efeito entourage sem efeitos psicoativos
- Formulações full spectrum: potencial terapêutico máximo com baixas doses de THC
- Características do paciente:
- Idade e peso
- Comorbidades
- Interações medicamentosas
- Sensibilidade a efeitos adversos
- Características da condição clínica:
- Severidade dos sintomas
- Refratariedade a tratamentos convencionais
- Necessidade de efeito antiinflamatório vs. analgésico vs. ansiolítico
Monitoramento clínico e ajuste posológico
A variedade de concentrações permite titulação gradual e ajuste fino da posologia, essencial para:
- Minimizar efeitos adversos
- Identificar dose mínima eficaz
- Adaptar o tratamento à evolução clínica
- Realizar descontinuação gradual quando necessário
Limitações e desafios persistentes
Apesar dos avanços, persistem desafios significativos:
- Custo elevado: Atualmente, os produtos importados têm custo médio mensal entre R$300 e R$1.500, o que acaba limitando o acesso para grande parte da população.
- Tempo de importação: o processo pode levar de 2 a 6 semanas
- Lacunas na formação médica: Um dos principais desafios ainda é o conhecimento insuficiente sobre o sistema endocanabinoide e, além disso, sobre a farmacologia dos canabinoides.
- Ausência de diretrizes clínicas nacionais: Além disso, ainda falta consenso sobre indicações, posologia e monitoramento, o que dificulta a padronização das práticas clínicas.
Perspectivas futuras e recomendações
A evolução do cenário regulatório aponta para:
- Possível regulamentação do cultivo nacional: poderia reduzir custos e aumentar acesso
- Desenvolvimento de diretrizes clínicas brasileiras: essencial para padronização da prática
- Inclusão em protocolos do SUS: necessária para democratização do acesso
- Ampliação da pesquisa clínica nacional: fundamental para dados específicos à população brasileira
Conclusão: Implicações para a prática médica
A atualização da lista de produtos de cannabis medicinal pela Anvisa representa, sem dúvida, um avanço significativo para a prática clínica baseada em evidências no Brasil. Nesse contexto, a diversidade de opções terapêuticas não apenas permite maior precisão no manejo de condições complexas, como também se mostra essencial quando essas são refratárias às terapias convencionais.
Recomenda-se que profissionais de saúde:
- Familiarizem-se com o repertório farmacológico disponível
- Documentem detalhadamente resposta clínica e efeitos adversos
- Participem de educação continuada específica
- Contribuam para a construção de evidências clínicas nacionais
Por fim, para acessar a lista completa dos produtos autorizados, consulte a Nota Técnica nº 58 no portal da Anvisa.
Perguntas frequentes para médicos e profissionais de saúde
Como verificar se um produto específico está autorizado pela Anvisa?
A lista completa está disponível na Nota Técnica nº 58 no portal da Anvisa. É possível realizar busca por nome comercial, fabricante ou país de origem. Recomenda-se verificar atualizações periódicas, pois novos produtos são frequentemente adicionados.
Quais as principais diferenças farmacológicas entre produtos isolados e full spectrum?
Produtos com CBD isolado contêm apenas canabidiol purificado (>99%), enquanto formulações full spectrum apresentam o espectro completo de canabinoides, terpenos e flavonoides da planta, em proporções variáveis. Evidências sugerem que formulações full spectrum podem ser eficazes em doses menores devido ao efeito entourage, porém apresentam maior variabilidade entre lotes e potencial para efeitos psicoativos se contiverem THC.
Como orientar pacientes sobre a importação?
Após prescrição, o paciente deve:
- Cadastrar-se no sistema da Anvisa
- Submeter a prescrição e documentação pessoal
- Aguardar autorização (geralmente 7-10 dias)
- Realizar a compra em fornecedores autorizados
- Acompanhar o processo de importação
Quais parâmetros clínicos devem ser monitorados durante o tratamento?
Recomenda-se monitoramento de:
- Eficácia terapêutica (escalas específicas para cada condição)
- Efeitos adversos (sonolência, alterações de apetite, diarreia)
- Interações medicamentosas (especialmente com anticonvulsivantes e anticoagulantes)
- Função hepática (especialmente em pacientes em politerapia)
Existem contraindicações absolutas para o uso de canabinoides?
Contraindicações absolutas incluem:
- Hipersensibilidade aos componentes da formulação
- Psicose ativa ou histórico de psicose (para produtos contendo THC)
- Arritmias cardíacas graves (para produtos com THC)
- Gestação e lactação (evidências limitadas de segurança)
Nota: Este artigo tem finalidade informativa e educativa. As informações não substituem a orientação médica profissional. Consulte sempre um médico antes de iniciar qualquer tratamento.