A jornada da cannabis medicinal no sistema brasileiro
A cannabis medicinal no Brasil percorre, portanto, um caminho complexo desde as bancadas de laboratório até chegar às mãos dos pacientes. Esse processo, relativamente recente em nossa realidade, envolve múltiplas etapas regulatórias, científicas e logísticas, que, por isso, merecem atenção detalhada dos profissionais de saúde. Além disso, à medida que a cannabis ganha espaço na medicina baseada em evidências, compreender sua cadeia de desenvolvimento torna-se fundamental para a prática clínica segura e eficaz.
A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 327/2019 da ANVISA representou um marco regulatório significativo, estabelecendo parâmetros para produtos à base de cannabis para fins medicinais, ainda que sob condições específicas e temporárias. Este cenário regulatório em evolução tem moldado como os produtos derivados de cannabis são pesquisados, desenvolvidos e disponibilizados no país.
O desenvolvimento farmacêutico dos canabinoides: da pesquisa básica à formulação
Pesquisa básica e identificação de potencial terapêutico
O ciclo de desenvolvimento dos medicamentos canabinoides inicia-se com a pesquisa básica, na qual são estudados os mais de 140 canabinoides e centenas de terpenos presentes na planta. Além disso, nesta fase, pesquisadores investigam:
- Farmacodinâmica dos canabinoides no sistema endocanabinoide
- Interações entre canabinoides (efeito entourage)
- Propriedades farmacológicas de canabinoides específicos (CBD, THC, CBG, etc.)
- Vias metabólicas e biodisponibilidade
Os estudos pré-clínicos, realizados in vitro e em modelos animais, fornecem dados preliminares sobre segurança e eficácia terapêutica. No entanto, é importante ressaltar que muitos dos achados nesta fase ainda precisam de validação em estudos clínicos controlados.
Desenvolvimento farmacotécnico e controle de qualidade
Após identificado o potencial terapêutico, em seguida, inicia-se o desenvolvimento farmacotécnico. Nesse estágio, envolve:
- Seleção de cultivares específicos com perfis químicos padronizados
- Métodos de extração (CO₂ supercrítico, etanol, hidrocarburetos)
- Purificação e isolamento de canabinoides
- Desenvolvimento de formulações com biodisponibilidade otimizada
- Estudos de estabilidade e shelf-life
O controle de qualidade é, portanto, particularmente crítico para produtos canabinoides, exigindo testes rigorosos para:
- Quantificação precisa de canabinoides (HPLC, GC-MS)
- Ausência de contaminantes microbiológicos
- Análise de resíduos de pesticidas e metais pesados
- Consistência entre lotes (homogeneidade)
A regulamentação da cannabis medicinal no Brasil
Marco regulatório atual e suas limitações
A cannabis medicinal no Brasil opera sob um arcabouço regulatório em constante evolução. Atualmente, existem três principais vias para acesso:
- Medicamentos registrados: Poucos produtos possuem registro definitivo na ANVISA, como o Mevatyl® (nabiximols)
- Produtos cadastrados via RDC 327/2019: Categoria especial que permite comercialização sob condições específicas
- Importação excepcional via RDC 660/2022: Permite importação individual mediante prescrição médica
Esta estrutura regulatória apresenta desafios significativos:
- Ausência de produção nacional legalizada da planta
- Dependência de matéria-prima importada
- Custos elevados devido à cadeia de importação
- Limitações nas formas farmacêuticas disponíveis
- Restrições quanto à concentração de THC (≤0,3% para produtos não registrados)
Estudos clínicos e aprovação regulatória
Para que um produto à base de cannabis obtenha registro definitivo, são necessários estudos clínicos robustos seguindo as fases tradicionais:
- Fase I: Segurança e farmacocinética em voluntários saudáveis
- Fase II: Eficácia preliminar e ajuste de dose em pequenos grupos de pacientes
- Fase III: Estudos multicêntricos randomizados com grandes populações
- Fase IV: Farmacovigilância pós-comercialização
No entanto, a cannabis apresenta desafios específicos para estudos clínicos:
- Dificuldade em realizar estudos duplo-cegos (efeitos psicoativos do THC)
- Variabilidade na composição fitoquímica entre produtos
- Interações medicamentosas complexas
- Heterogeneidade de resposta devido a polimorfismos genéticos no sistema endocanabinoide
Da aprovação à disponibilização: logística e acesso
Fabricação e importação
Uma vez aprovados ou cadastrados, os produtos de cannabis medicinal seguem, assim, fluxos distintos:
- Produtos importados acabados: Importados já em sua forma final, prontos para dispensação
- Produtos com fabricação parcial no Brasil: Importação de extratos ou isolados para formulação local
- Produtos magistrais: Preparados em farmácias de manipulação a partir de insumos importados
A cadeia logística envolve:
- Certificação de Boas Práticas de Fabricação (BPF)
- Controle aduaneiro especial
- Rastreabilidade completa do produto
- Armazenamento em condições controladas
- Distribuição restrita a estabelecimentos autorizados
Disponibilização ao paciente e farmacovigilância
A dispensação de produtos canabinoides segue regras específicas:
- Retenção de receituário especial (tipo B para produtos com THC >0,3%)
- Documentação de consentimento informado
- Monitoramento de eventos adversos
- Relatórios periódicos à ANVISA
A farmacovigilância é particularmente importante para produtos à base de cannabis, considerando:
- Potenciais interações medicamentosas
- Efeitos adversos cognitivos e psiquiátricos
- Variabilidade interindividual na resposta
- Uso prolongado e efeitos cumulativos
Desafios clínicos na prescrição de cannabis medicinal

Seleção de produtos e individualização terapêutica
A heterogeneidade dos produtos disponíveis representa, portanto, um desafio significativo para os médicos. Por isso, ao prescrever, é necessário considerar:
- Relação CBD:THC apropriada para cada condição
- Presença de canabinoides menores e terpenos (efeito entourage)
- Via de administração e farmacocinética resultante
- Titulação de dose individualizada
- Comorbidades e medicações concomitantes
A medicina personalizada é, por sua vez, particularmente relevante na terapêutica canabinoide, sobretudo considerando a variabilidade genética no sistema endocanabinoide e nas enzimas metabolizadoras.
Educação médica continuada e prática baseada em evidências
A cannabis medicinal no Brasil ainda enfrenta barreiras significativas relacionadas à educação médica:
- Limitada abordagem do sistema endocanabinoide na formação médica tradicional
- Escassez de diretrizes clínicas específicas para o contexto brasileiro
- Necessidade de interpretação crítica de evidências internacionais
- Equilíbrio entre evidências científicas e experiência clínica acumulada
Sociedades médicas começam a desenvolver posicionamentos e programas educativos, mas há necessidade de maior padronização nas recomendações.
O futuro da cannabis medicinal no Brasil
Tendências em pesquisa e desenvolvimento
O campo da cannabis medicinal está em rápida evolução, com tendências promissoras:
- Desenvolvimento de canabinoides sintéticos com maior seletividade
- Formulações avançadas com liberação controlada
- Combinações otimizadas de canabinoides e terpenos
- Terapias direcionadas a receptores específicos (CB1, CB2, GPR55)
- Estudos genômicos para medicina personalizada
A pesquisa nacional começa a ganhar força, com universidades e institutos desenvolvendo estudos sobre aplicações específicas para a população brasileira.
Perspectivas regulatórias e de acesso
O cenário regulatório da cannabis medicinal no Brasil provavelmente continuará evoluindo:
- Possível regulamentação do cultivo para fins medicinais
- Ampliação das categorias de produtos disponíveis
- Desenvolvimento de protocolos clínicos nacionais
- Integração com o sistema público de saúde
- Potencial cobertura por planos de saúde
Conclusão
A jornada da cannabis medicinal no Brasil, do laboratório à prática clínica, representa um campo em rápida evolução, que, portanto, demanda constante atualização dos profissionais de saúde. Além disso, a compreensão dos processos de desenvolvimento, regulação e disponibilização desses produtos é fundamental para uma prescrição segura e eficaz.
Recomenda-se buscar educação continuada específica sobre o sistema endocanabinoide e terapêuticas relacionadas, além de participar de discussões multidisciplinares que contribuam para o avanço deste campo no contexto brasileiro.
Perguntas frequentes:
Quais são as principais diferenças entre medicamentos registrados e produtos cadastrados de cannabis?
Medicamentos registrados passaram por todas as fases de estudos clínicos e possuem indicações terapêuticas aprovadas, enquanto produtos cadastrados (RDC 327/2019) têm autorização sanitária temporária, sem indicações específicas aprovadas, dependendo exclusivamente da avaliação médica individualizada.
Como interpretar os certificados de análise dos produtos de cannabis disponíveis?
Os certificados devem apresentar quantificação precisa de canabinoides (especialmente CBD e THC), além da ausência de contaminantes microbiológicos e químicos, bem como a rastreabilidade do lote. Além disso, verifique se o laboratório responsável possui certificações internacionais (ISO 17025) e se os métodos analíticos são validados.
Quais parâmetros farmacológicos devem ser considerados na escolha entre diferentes vias de administração?
Considere biodisponibilidade (oral: 6-20%; sublingual: 20-35%; inalatória: 30-60%), além do tempo até efeito (oral: 60-180 min; sublingual: 15-45 min; inalatória: 5-10 min), bem como a duração de ação e o metabolismo de primeira passagem. Importante destacar que pacientes com alterações hepáticas podem apresentar metabolização alterada das formulações orais.
Como realizar a titulação de dose de forma segura, especialmente em produtos contendo THC?
Inicie com doses mínimas (2,5mg CBD; 0,5-1mg THC), preferencialmente noturnas, com incrementos graduais a cada 2-7 dias conforme tolerabilidade. Monitore efeitos adversos cognitivos, cardiovasculares e psiquiátricos. Em idosos ou pacientes com comorbidades, considere incrementos ainda mais conservadores (princípio “start low, go slow, stay low”).
Quais são as considerações específicas para prescrição em populações especiais (idosos, gestantes, pacientes psiquiátricos)?
Em idosos, considere maior sensibilidade ao THC, risco de quedas e interações medicamentosas. Gestantes e lactantes: evite prescrição devido a dados limitados de segurança. Pacientes psiquiátricos: avalie risco/benefício cuidadosamente, especialmente com THC em pacientes com histórico de psicose ou transtorno bipolar. Monitore sintomas psiquiátricos regularmente.
Atenção: Este artigo tem caráter informativo e não substitui a consulta com profissionais de saúde qualificados. Sempre consulte seu médico antes de iniciar qualquer tratamento.
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