Pesquisa da UFSC demostra potencial da cannabis na anestesia

Pesquisa inovadora da UFSC demonstra o potencial da cannabis na anestesia

Julia Rezende, médica veterinária, entrevista João Lourenço, médico veterinário, mestre pela UFSC, que traz uma visão detalhada de sua pesquisa sobre os benefícios da cannabis para a saúde animal ao usar anestesia.

Estudo piloto inovador sobre cannabis na anestesia

“Full spectrum Cannabidiol-rich extract reduced Propofol dosage required for anesthetic induction in dogs – A pilot study”

Geralmente, nem consideramos a possibilidade de utilizar cannabis na anestesia, mas isso tem um fundamento teórico muito importante, pois o Sistema Endocanabinoide (SEC) interage com vários fármacos anestésicos. Essa interação pode influenciar significativamente os efeitos anestésicos.

Voltamos à tríade: cannabis, SEC e anestésicos. Há uma relação entre os anestésicos e o SEC, entre a cannabis e o SEC, e também entre a combinação de cannabis e anestésicos com o SEC.

Gostaria de inspirar outras pessoas a fazerem pesquisas com cannabis, pois sou uma prova de que isso é possível, apesar das dificuldades. As coisas estão se tornando mais fáceis com o tempo, por exemplo, há 5 anos era mais difícil do que hoje. Espero que mais pessoas se envolvam nas pesquisas, já que ainda precisamos de décadas — ou até séculos — de estudos para isolar variáveis e explorar inúmeras combinações em diferentes áreas, espécies e contextos.

“Somos parte da solução, e a cannabis será uma das principais terapias, com o SEC sendo um dos principais alvos farmacológicos, ou pelo menos já é, mas muitos ainda não sabem.”

O sistema endocanabinoide é um sistema neuro-imuno modulador que regula a comunicação nervosa e o sistema imunológico como um todo.

O propofol e outros fármacos anestésicos interagem com o SEC. No estudo, a equipe realizou a MPA com metadona (opioide), e observou que o uso de opioides a curto prazo pode aumentar a expressão de receptores canabinoides, além de favorecer possíveis interações com o endocanabinoidoma.

O propofol inibe a enzima (FAAH) que degrada a anandamida (AEA), e essa mesma enzima é inibida pelo CBD. Um estudo realizado com cães em 2009, no qual me baseei, mostrou que a administração de cannabis por via intraperitoneal reduziu a dose de propofol necessária e aumentou o tempo anestésico, potencializando o efeito do propofol.

Outra pesquisa com roedores mostrou que a administração de agonistas sintéticos também aumentou a eficácia do propofol, enquanto a administração de um antagonista canabinoide diminuiu a eficácia do propofol, sugerindo que o propofol atua parcialmente através do receptor CB1.

Este é um ponto importantíssimo, especialmente para anestesistas, que possivelmente modulam esse sistema todos os dias.

Existem fármacos que podem potencializar os anestésicos, como o omeprazol, que inibe o citocromo, embora sua ação demore dias. Em nossos estudos, acreditamos que a inibição do CYP não foi o mecanismo principal; ao invés disso, o CBD e o CBDA atuam na mesma enzima que o propofol, a FAAH, estimulando o CB1 de forma indireta, ao aumentar ou diminuir a recapturação da AEA.

Metodologia:

Ao todo, foram utilizados 27 animais divididos em 3 grupos:

Grupo controle (recebendo apenas azeite de oliva);
Grupo 2 (2mg/kg de fitocanabinoides);
Grupo 3 (6mg/kg de fitocanabinoides).
Nossa metodologia focava na avaliação da dose de propofol administrada. Realizamos outras avaliações, mas o foco principal era a dose de propofol.

A equipe avaliou os animais utilizando a escala de Wagner et al. (UNESP), que analisa postura espontânea, posição do globo ocular, resposta a barulhos e atitude. Também fizemos aferições de frequência cardíaca, frequência respiratória, pressão arterial sistólica e temperatura retal em quatro momentos:

– Avaliação basal:  antes de administrar o extrato/placebo (com os avaliadores cegos ao tratamento).

– 30 minutos após a administração.
– 1 hora após a administração, seguida da aplicação da MPA.
– Após a indução e intubação.

Este foi um estudo duplo-cego, controlado por placebo, randomizado e clínico prospectivo. A administração do extrato de cannabis foi realizada na gengiva dos pacientes, e após 30 minutos, realizamos nova avaliação. Após mais 30 minutos, fizemos a administração da MPA e nova avaliação 15 minutos depois.

Na etapa cirúrgica, realizamos a indução com 2mg/kg/min de propofol. Avaliamos a resistência ao acesso venoso, à intubação e à dose de propofol necessária para indução, comparando os grupos e os tempos de avaliação.

Com isso, conseguimos comparar alguns pontos como:
– período antes da MPA: para ver se esses animais estavam sedados ou se tinham alteração em FC, FR, PA;
– período após a MPA: conseguíamos ver a comparação entre os grupos, se o uso da cannabis potencializou a sedação desses animais que eram feita com acepromazina e metadona;

Ou seja, conseguimos fazer comparações entre os grupos e entre os tempos de avaliação.

Resultados:

Não houve sedação antes da MPA em nenhum grupo.
Não houve diferença significativa na resistência ao acesso venoso ou intubação.

O grupo que recebeu 6mg/kg de fitocanabinoides precisou de 23% menos propofol

Houve redução na frequência cardíaca e pressão arterial sistólica nos grupos que receberam cannabis.
Não houve diferença na temperatura retal, embora o grupo controle tenha mostrado uma maior redução.
O perfil molecular do extrato foi 1,6:1 CBDa:THC
e 21:1 CBDa:THC

Limitações do estudo:

– Os animais tinham pouco tempo para ficar nos canis;

– A equipe realizou o estudo no inverno, em temperaturas baixas e sem controle de ar-condicionado, já que o aparelho estava danificado. Por isso, precisaram utilizar um aquecedor portátil para manter os animais em uma temperatura ambiente mais confortável.

– Randomização dos animais: diferentes tipos de temperamento, já que o estudo foi realizado desde animais de sítio, no qual não eram muito acostumados com manejo à animais extremamente dóceis e adeptos ao manejo. Porém a variância ficou estável dentro de tanta variável.


– Enfrentei algumas limitações na avaliação transcirúrgica, pois gostaria de ter utilizado um vaporizador calibrado, um capnógrafo e um analisador de gases. Tenho uma hipótese de que o Sevoflurano, assim como o Propofol, também interage com o SEC. Por isso, acredito que seus mecanismos possam ser parcialmente modulados pelo sistema endocanabinoide, o que indicaria que a associação com a cannabis pode reduzir também a dose necessária de Isoflurano e Sevoflurano. Só que não avaliamos por utilizamos o vaporizador universal, ou seja, era dose efeito, com isso não sabemos se os animais receberam menos ou não, mas podemos avaliar mais.

Considerações finais:

Como pesquisadores e profissionais, temos a responsabilidade de não recomendar o uso de cannabis em anestesia de forma generalizada. Ainda há muitas variáveis a serem exploradas, como o impacto em animais com comorbidades, os efeitos sobre o sangramento, arritmias e pressão durante a cirurgia.

Pesquisadores devem discutir e estudar mais profundamente o mecanismo sinérgico entre o CBD e o propofol, considerando todas as variáveis envolvidas.

O THC em doses crônicas aparenta reduzir a eficácia do propofol, enquanto em doses agudas, o THC pode potencializar a ação do propofol através do CB1. No entanto, essa hipótese ainda precisa ser explorada em mais detalhes.

Mensagem final:

Gostaria de inspirar outras pessoas a se envolverem em pesquisas com cannabis. Não é um caminho fácil, mas é muito recompensador. Somos parte da solução para problemas complexos, e acredito que a cannabis se tornará uma parte essencial da anestesia nos próximos anos.

Nada que é impactante e grande é fácil, mas vale a pena cada esforço.

Atenção: Este artigo tem caráter informativo e não substitui a consulta com profissionais de saúde qualificados. Sempre consulte seu médico antes de iniciar qualquer tratamento.

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