Uso de canabidiol se consolida na epilepsia

Um estudo reuniu evidências científicas que indicam a eficácia do canabidiol na diminuição das crises convulsivas, mostrando uma resposta 127% maior que o placebo na epilepsia refratária. No entanto, esse tratamento ainda não está amplamente disponível na rede pública.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 2% da população mundial apresenta quadros de epilepsia. Especialistas consideram a epilepsia uma síndrome neurológica crônica, caracterizada por pelo menos duas crises epilépticas espontâneas. Essas crises podem ser classificadas como focais ou generalizadas, dependendo das regiões cerebrais afetadas. O tratamento da doença é complexo e pode envolver cirurgia ou fármacos capazes de diminuir a ocorrência das crises. Um dos compostos mais estudados para casos em que não há resposta positiva com outros fármacos anticonvulsivantes, os chamados casos farmacorresistentes, é o canabidiol (CBD), presente na planta Cannabis sativa.

Para avaliar os efeitos na redução de crises, o pesquisador Bruno Fernandes Santos, doutor pela Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), elaborou um artigo de revisão sistemática da literatura — um tipo de estudo em que o autor reúne as pesquisas já publicadas sobre o tema, seleciona aquelas que atendem a critérios específicos e, por fim, analisa os dados para entender o que as melhores evidências indicam.

A pesquisa feita nas bases de dados do Google Scholar, Scielo e PubMed/Medline usando as palavras-chave Canabidiol, Epilepsy e Drug Resistant Epilepsy. Após a aplicação dos critérios de exclusão, seis estudos foram elegíveis para avaliação de texto completo. Publicado na revista Acta Epileptologica, a pesquisa revela uma redução de 41% no número de convulsões com o uso do canabidiol.

Em comparação com a redução média de 18,1% nos grupos placebo, em que foram dadas baixas doses de medicamentos convencionais, a resposta teve uma taxa 127% maior nos pacientes que receberam a intervenção canábica. A epilepsia é complexa e uma causa de estigmatização das pessoas. Ela não é uma doença única. No caso da epilepsia refratária — pacientes com resistência, dificuldade de tratamento e não candidatos à cirurgia — existem dificuldades no cuidado”, contextualiza Santos ao Jornal da USP. Nesse contexto, a resposta terapêutica do canabidiol ganha destaque, sobretudo para novos protocolos e possível adoção no Sistema Único de Saúde (SUS), em razão de seu potencial para esses casos específicos.

“O canabidiol trouxe um benefício adicional, reduzindo significativamente o número de crises nos pacientes refratários, uma melhora na qualidade de vida e outros benefícios secundários” – Bruno Fernandes Santos

Apesar das evidências científicas se tornarem mais sólidas, o tratamento ainda não é amplamente disponibilizado na rede pública de saúde por atraso em iniciativas nacionais em adotá-lo. “Desconheço iniciativas federais, mas conheço iniciativas estaduais. Há alguns Estados com programas de disponibilização para pacientes do SUS. Um grupo de colegas avaliam os pacientes e para aqueles que julgam necessário, vão indicar o canabidiol e o Estado vai fornecer para esses pacientes”, explica o médico. Apesar disso, reconhece que “não ter um plano federal quanto a isso limita as alternativas dos pacientes que vivem com epilepsia refratária hoje”.

Homem sorrindo usando um paletó azul e camisa social branca com cabelo castanho escruro curto e óculos arredondado preto em um fundo desfocado
Bruno Fernandes Santos – Foto: Arquivo pessoal

Mecanismo de ação

De acordo com o médico, a doença pode ter diversas causas. “Pode ser algo que está irritando o cérebro, como um tumor, uma malformação ou até uma alteração degenerativa, em que o hipocampo [região do cérebro] começa a se degenerar — o que chamamos de esclerose mesial temporal”, exemplifica. Além disso, ele destaca a importância de diferenciar crise epiléptica de convulsão. “Convulsão é o fenômeno motor, ou seja, os abalos musculares que ocorrem durante a crise epiléptica. No entanto, nem toda crise epiléptica se manifesta com convulsões.” Para esclarecer, ele cita casos de intoxicação alcoólica em que as convulsões ocorrem, mas que não caracterizam episódios de epilepsia.

Outra doença que pode ser confundida com a epilepsia é o Parkinson. Enquanto a primeira é resultante de uma atividade elétrica anormal no cérebro que causam as crises, a outra doença é neurodegenerativa e afeta a produção de dopamina, neurotransmissor essencial para coordenação motora. Para controlar essa anormalidades específicas da crise epiléptica, Santos explica que “o canabidiol tem um mecanismo de ação mediado pelo sistema endocanabinoide, que tenta compensar a hiperexcitabilidade aumentando a produção de endocanabinoides”. 

Um grande grupo de cientistas identificou esse sistema em 1992.

Ele inclui neurotransmissores que o próprio organismo humano produz — os chamados endocanabinoides — e seus receptores, como os CB1 e CB2, que estão presentes em diversas partes do corpo, incluindo o cérebro e os sistemas nervoso central e periférico. Ele desempenha um papel importante na regulação de processos como dor, inflamação, apetite, sono e humor. Estudos recentes destacam a capacidade de reduzir a sensação de dor, influenciar a memória e proteger o sistema nervoso em alguns casos. 

O sítio de ligação [do sistema endocanabinoide] desse ativo específico [canabidiol] vai ter várias ações que acabam controlando as crises. O ativo aumenta o limite da pessoa à convulsão”, explica o pesquisador. Em outras palavras, trata-se de uma lógica semelhante à das medicações comuns, porém com atuação por uma via diferente. “As medicações clássicas, por exemplo, agem no canal de sódio da membrana celular, bloqueando esse canal. Como consequência, a célula se torna menos excitável e com menor capacidade de gerar uma crise.” Apesar desses avanços, a comunidade científica ainda não compreendeu totalmente como o CBD interage com o sistema endocanabinoide.

Outras patologias e políticas públicas

“Esse sistema tem muitas ações. Eles não são específicos de tratamento epilético. Existem vários outros usos sendo avaliados”, continua. Desses usos investigados com o canabidiol, há comprovações de efeitos analgésicos e no sono já bem consolidadas. Porém, Santos alerta que “temos que ter cuidado para não achar que é uma solução de todos os males, que vai ajudar em tudo. Não é bem assim”. Essa crítica vem fundamentada em uma percepção do crescente número de médicos que se declaram especialistas em tratamentos com CBD. 

“Tem um médico que é especialista e vai usar todo o ‘armamentário’ para conseguir ajudar pacientes com aquela enfermidade. Agora, um médico que é especialista em uma ‘arma’ vai tentar encaixar aquela mesma ‘arma’ em várias enfermidades”, critica. O uso para tratar algum espectro de autismo é questionável, por exemplo, conforme o pesquisador, e afirma ser contra o avanço acrítico para tratar diversas outras enfermidades.  

O médico reforça a importância deste estudo por “trazer a relevância e mostrar a evidência científica em cima do uso do canabidiol para epilepsia refratária, porque, quando fugimos da ciência, fica uma questão política baseada em achismos”, conclui. 

O artigo completo pode ser acessado clicando aqui.

Fonte: Jornal da USP

Atenção: Este artigo tem caráter informativo e não substitui a consulta com profissionais de saúde qualificados. Sempre consulte seu médico antes de iniciar qualquer tratamento.

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