A diferença entre uso humano e veterinário da cannabis medicinal representa um campo de estudo fundamental para a prática clínica contemporânea. Com o crescente interesse pelos canabinoides como alternativa terapêutica, torna-se imperativo que profissionais de saúde compreendam as particularidades farmacológicas, posológicas e formulativas que distinguem as aplicações entre espécies. Dessa forma, este artigo analisa as evidências científicas atuais sobre essas diferenças, oferecendo um panorama técnico para embasar decisões clínicas adequadas.
Fundamentos farmacológicos: metabolismo comparativo
Sistema endocanabinoide: variações interespecíficas
O sistema endocanabinoide (SEC) apresenta variações significativas entre humanos e animais, o que impacta diretamente a farmacodinâmica dos canabinoides exógenos. Além disso, estudos comparativos demonstram diferenças na densidade e distribuição dos receptores CB1 e CB2 entre espécies.
Em humanos, os receptores CB1 concentram-se predominantemente no sistema nervoso central, enquanto em cães e gatos apresentam maior distribuição em tecidos periféricos. Silver et al. (2019) identificaram que cães possuem aproximadamente 30% mais receptores CB1 no cerebelo comparados aos humanos, resultando em maior sensibilidade aos efeitos psicoativos do THC.
Além disso, a expressão de enzimas metabolizadoras como:
- Citocromo P450
- Glucuroniltransferases
- Hidrolases de amida de ácidos graxos (FAAH)
Varia consideravelmente entre espécies, alterando o perfil farmacocinético dos canabinoides.
Metabolismo hepático e biodisponibilidade
A diferença entre uso humano e veterinário manifesta-se claramente no metabolismo hepático. Por exemplo, caninos apresentam deficiência na glucuronidação hepática, via metabólica essencial para a eliminação do THC em humanos. Como consequência, a meia-vida do THC em cães pode ser até três vezes superior à observada em humanos (McGrath et al., 2020).
Esta particularidade metabólica explica a maior toxicidade do THC em cães, pois doses consideradas terapêuticas para humanos podem induzir quadros de intoxicação severa, incluindo ataxia, hipotermia e depressão neurológica.
Dosagem: considerações clínicas interespecíficas
Alometria e cálculo posológico
O cálculo posológico para canabinoides em diferentes espécies não deve ser feito com base em uma simples extrapolação pelo peso corporal. Em vez disso, devem-se aplicar princípios alométricos, considerando-se:
- Taxa metabólica basal
- Superfície corporal
- Clearance hepático específico da espécie
- Sensibilidade dos receptores canabinoides
A equação alométrica Y = aW^b, onde Y representa o parâmetro fisiológico, W o peso corporal e a e b são constantes específicas da espécie, fornece uma aproximação mais precisa para ajustes posológicos interespecíficos (Deraspe et al., 2022).
Janela terapêutica comparativa
A janela terapêutica dos canabinoides varia significativamente entre humanos e animais domésticos:
Espécie | Dose Terapêutica de CBD (mg/kg) | Dose Tóxica de THC (mg/kg) | Razão Terapêutica |
---|
Humanos | 2–50 | >15 | ~7,5 |
Cães | 0,5–5 | >0,2 | ~0,4 |
Gatos | 0,1–2 | >0,1 | ~0,5 |
Equinos | 1–4 | >5 | ~5 |
Fonte: Adaptado de Bartner et al. (2018) e McGrath et al. (2020)
Esta disparidade implica necessidade de maior precisão posológica na medicina veterinária, especialmente para formulações contendo THC, onde a margem de segurança é consideravelmente menor.
Formulações específicas: desenvolvimento galenológico
Biodisponibilidade e vias de administração
As vias de administração preferenciais diferem entre humanos e animais devido a particularidades anatômicas e comportamentais. A biodisponibilidade oral do CBD em cães (13-19%) é significativamente inferior à observada em humanos (25-35%), conforme demonstrado por Bartner et al. (2018).
Para otimização terapêutica, formulações veterinárias frequentemente incorporam:
- Sistemas lipídicos nanoestruturados para aumentar a biodisponibilidade oral
- Excipientes específicos para palatabilidade em diferentes espécies
- Veículos de liberação controlada adaptados à fisiologia gastrointestinal específica
Estabilidade e conservação comparativa
As formulações veterinárias requerem considerações específicas quanto à estabilidade, devido a:
- Maior exposição a variações térmicas durante armazenamento
- Necessidade de palatabilidade sem comprometer estabilidade química
- Resistência a degradação por exposição à luz durante administração
Estudos de estabilidade acelerada demonstram que formulações veterinárias de CBD em emulsão óleo/água apresentam degradação 15% mais rápida que equivalentes para uso humano quando expostas a ciclos de temperatura (4-40°C), exigindo sistemas conservantes diferenciados (Wakshlag et al., 2020).
Considerações toxicológicas e contraindicações específicas
Perfil de toxicidade espécie-específico
A diferença entre uso humano e veterinário é particularmente evidente no perfil toxicológico. Especificamente em cães, observa-se maior sensibilidade ao THC devido à abundância de receptores CB1 no tronco cerebral e nos centros de regulação térmica. Como resultado, a síndrome de intoxicação canina por THC manifesta-se com:
- Ataxia severa e incapacidade de manter estação
- Incontinência urinária
- Hipotermia (diferentemente da hipertermia observada em humanos)
- Midríase e hiperreflexia
Em contraste, felinos apresentam maior sensibilidade aos terpenos, particularmente limoneno e pineno, com manifestações de hepatotoxicidade em concentrações consideradas seguras para humanos (Deabold et al., 2019).
Interações medicamentosas comparativas
As interações medicamentosas também diferem entre espécies devido às variações nas isoenzimas do citocromo P450. Por exemplo, em cães, a interação entre CBD e fármacos metabolizados pela CYP3A4 é potencialmente mais significativa do que em humanos.
Estudos clínicos documentam alterações significativas nos níveis séricos de:
- Fenobarbital (aumento de 50-75% em cães vs. 20-30% em humanos)
- Ciclosporina (aumento de 30-45% em cães)
- Cetoconazol (redução do clearance em 60% em cães vs. 35% em humanos)
Estas interações exigem monitoramento farmacocinético rigoroso e ajustes posológicos específicos na medicina veterinária (Vaughn et al., 2020).
Evidências clínicas comparativas

Eficácia terapêutica interespecífica
Meta-análises recentes demonstram diferenças significativas na resposta terapêutica entre espécies:
- Epilepsia refratária: Em termos comparativos, o CBD demonstra eficácia de 89% na redução de crises em cães com epilepsia refratária, enquanto em humanos, com síndromes epilépticas similares, essa eficácia varia entre 42% e 67% (McGrath et al., 2019).
- Dor neuropática: A combinação THC:CBD (1:20) demonstra NNT (número necessário para tratar) de 3.2 em cães com dor neuropática vs. 5.6 em humanos com condições similares (Gamble et al., 2018).
- Ansiedade: Cães apresentam resposta ansiolítica ao CBD em doses 30% inferiores às necessárias em humanos, provavelmente porque possuem maior permeabilidade da barreira hematoencefálica (Kogan et al., 2020).
Considerações regulatórias e éticas
O desenvolvimento de produtos à base de cannabis para uso veterinário enfrenta desafios regulatórios específicos:
- Ausência de diretrizes específicas para estudos pré-clínicos em múltiplas espécies
- Necessidade de demonstração de segurança espécie-específica
- Considerações éticas sobre consentimento e benefício terapêutico em animais
A Associação Americana de Medicina Veterinária (AVMA) estabeleceu em 2023 diretrizes preliminares para estudos clínicos com canabinoides em animais, recomendando protocolos específicos para avaliação de segurança e eficácia.
Conclusão
A diferença entre uso humano e veterinário da cannabis medicinal transcende simples ajustes posológicos, pois envolve considerações farmacológicas, galenológicas e toxicológicas complexas. Por isso, a compreensão destas particularidades é fundamental para a prática clínica segura e eficaz.
O desenvolvimento de formulações espécie-específicas, baseadas em evidências farmacológicas comparativas, representa o futuro da cannabis medicinal veterinária. Nesse sentido, médicos e veterinários devem colaborar no estabelecimento de protocolos terapêuticos fundamentados nas particularidades fisiológicas de cada espécie, garantindo segurança e eficácia terapêutica.
Além disso, recomenda-se que profissionais de saúde busquem educação continuada específica sobre canabinoides comparativos e consultem literatura atualizada antes de prescrever ou recomendar produtos à base de cannabis para diferentes espécies.
Perguntas frequentes para médicos
Quais são os principais marcadores laboratoriais para monitorar a segurança do tratamento com canabinoides em diferentes espécies?
Em humanos, recomenda-se o monitoramento de enzimas hepáticas (ALT, AST, GGT) e da função renal (creatinina, BUN). Já no caso dos cães, além desses parâmetros, é essencial o acompanhamento da fosfatase alcalina, que costuma apresentar elevação significativa mesmo em doses terapêuticas. Por fim, em relação aos felinos, recomenda-se o hemograma completo com ênfase na contagem plaquetária, devido à maior sensibilidade hematopoiética aos canabinoides.
Como ajustar a dosagem de CBD quando há uso concomitante de anticonvulsivantes em pacientes humanos versus caninos?
Em humanos, recomenda-se a redução de 25 a 30% na dose de clobazam quando administrado concomitantemente com CBD. Em contraste, em cães, a interação é mais pronunciada, exigindo uma redução de 40 a 50% na dose de fenobarbital, bem como monitoramento sérico semanal durante as primeiras quatro semanas de tratamento combinado.
Existem biomarcadores específicos para avaliar a resposta terapêutica aos canabinoides entre diferentes espécies?
Sim. Em humanos, os níveis séricos de anandamida e 2-AG correlacionam-se com a resposta terapêutica em condições inflamatórias. Em comparação, o biomarcador mais confiável em cães é o nível de proteína C-reativa, que demonstra redução dose-dependente em resposta ao CBD. Por fim, em felinos, os níveis de prostaglandina E2 no líquido sinovial representam um marcador sensível para avaliar a eficácia anti-inflamatória.
Quais são as considerações específicas para formulações de canabinoides destinadas a pacientes geriátricos humanos versus animais geriátricos?
Pacientes humanos geriátricos apresentam redução de 20-30% no metabolismo hepático de fase I, o que exige redução posológica proporcional. Por outro lado, cães geriátricos apresentam alteração mais significativa, com redução de 40-50% na capacidade de glucuronidação, além de maior permeabilidade da barreira hematoencefálica, exigindo assim reduções posológicas mais expressivas e monitoramento neurológico regular.
Como interpretar corretamente os resultados de estudos pré-clínicos com canabinoides realizados em modelos animais para aplicação em humanos?
A extrapolação de resultados requer consideração das diferenças no sistema endocanabinoide. Estudos em roedores tipicamente superestimam a potência analgésica (fator de correção ~0.6) e subestimam efeitos adversos cognitivos. Estudos em cães oferecem melhor correlação para efeitos cardiovasculares, enquanto primatas não-humanos proporcionam melhor predição de efeitos neuropsiquiátricos em humanos.
Atenção: Este artigo tem caráter informativo e não substitui a consulta com profissionais de saúde qualificados. Sempre consulte seu médico antes de iniciar qualquer tratamento.
[…] A nova norma exige que a prescrição veterinária de produtos à base de cannabis siga os mesmos re… Assim, ao preencher o receituário, o veterinário deve incluir o nome e endereço completo do proprietário e a identificação do animal como paciente. Esse procedimento padronizado assegura um controle rigoroso da distribuição e uso desses produtos. […]